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“Eu preciso falar”, assim respondeu Kandice Veiga Jardim ao ser perguntada se estaria disposta a contar a história de sua família e, consequentemente, do Instituto Veiga Borges, lugar de proteção à criança e ao adolescente que ela ajudou a fundar.
Mãe, Kandice viveu no último mês do ano passado os piores dias de sua vida. Laura, assim será chamada de maneira fictícia, a filha de Kandice ao longo desta reportagem, de 1 ano e 8 meses, que foi abusada sexualmente a poucos metros de sua própria casa. O crime ocorreu precisamente em 30 de dezembro de 2022.
Servidora da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego), Kandice recebeu, na tarde do dia anterior ao crime, a notícia do falecimento de sua sogra, que lutava contra um câncer. Ciente da turbulência que se avizinhava, achou por bem deixar a filha aos cuidados da babá, que acompanhava Laura havia mais de um ano e morava a poucas casas de distância.
A babá, segundo Kandice, estava acostumada a fazer horas extras e ficar com a criança em situações de emergência. Depois do velório, ao retornar para casa, notou, porém, que nem a babá e nem a criança estavam lá. A filha mais velha relatou a Kandice que a mulher decidiu levar a criança para casa e pensou que a mãe estaria ciente.
Kandice não contava, porém, que o recente relacionamento da babá renderia um desdobramento trágico a essa história. Acontece que a mulher passou a morar, meses antes, com um homem a quem havia conhecido pela internet. E ele dormiria com elas naquela noite.
No dia seguinte, Kandice buscou a filha. A menina foi entregue de banho tomado. Logo no primeiro contato, percebeu um hematoma na testa de Laura. A lesão foi justificada pela babá como uma “picada de pernilongo”. A história não a convenceu.
Kandice, naquele momento, só se preocupou em acalmar o comportamento agitado da filha e levá-la para casa. “Mais tarde, quando fui trocar a fralda, ela encolheu as pernas e começou a gritar forte. Ela não permitia que eu a tocasse”, contou.
A mãe, claro, ficou perplexa com a situação. Foi então que decidiu levar Laura ao hospital. Lá foi constatada, assim como no Instituto Médico Legal (IML), a prática de crime sexual contra a menina. O homem e a babá foram presos em flagrante.
A servidora relata que, desde então, a filha apresenta reflexos de um trauma profundo. “Ela não consegue verbalizar, mas acorda, por exemplo, às 5 horas da manhã chorando quase todos os dias”. Esse, segundo ela, teria sido o horário em que o abuso ocorreu.
“No começo ela também tinha aversão à figura masculina. Qualquer um que se aproximasse gerava nela um grande incômodo”, relata a mãe. A criança perdeu cerca de 3 kg depois do abuso. “Ela não comia, só gritava, se comportava sempre de maneira muito agitada, rejeitava tudo e jogava os brinquedos. Como ela não conseguia verbalizar, o corpo é que falava.”
A vida já não é a mesma
Kandice abraçou a causa e decidiu dedicar parte de sua vida a ajudar outras famílias que enfrentam o mesmo problema.
“Encontrei uma advogada que apostou na minha ideia de estruturar um local, um instituto. Eu precisava oferecer às pessoas aquilo que não tive. Se eu que sou instruída, que tenho o mínimo de informação, tive dificuldades, imagina o que não passam inúmeras outras famílias de origem simples, humilde?”, indaga.
Do ocorrido, nasceu o Instituto Veiga Borges, localizado no Setor Coimbra. A unidade, fundada em abril deste ano, e que ainda passa por um processo de estruturação, já atendeu mais de cem casos de diferentes regiões do estado.
“Nós acompanhamos o caso do início ao fim. Não desamparamos a mãe nem a criança. Nossa unidade funciona 24 horas por dia, sempre que alguém nos aciona, nos colocamos prontos para atender”, explica.
“Ainda temos que comprar alguns móveis, finalizar nossa fachada. Mas o que temos hoje já é motivo de muito orgulho. Começamos com a cara e a coragem. Hoje temos cinco psicólogas, cinco juristas e duas assistentes sociais, todas trabalhando em diferentes dias e horários de maneira 100% voluntária”, informa Kandice.
“O silêncio só ajuda o agressor”
Kandice, que ocupa a posição de diretora-geral no instituto, diz que uma das grandes barreiras encontradas na busca pelo enfrentamento passa pela vergonha. “É algo muito sério e que precisa ser dito. A mulher, por exemplo, só conquistou espaço com a Lei Maria da Penha por falar, por expor. Por que com as crianças seria diferente? O silêncio só ajuda o agressor.”
Quem procura o instituto em busca de ajuda passa, primeiro, por um processo de triagem. Em seguida, tanto o responsável quanto a criança são encaminhados a um psicólogo, só então é que o jurídico entra em ação. “Nós mantemos a criança em terapia e acompanhamos todo processo”, explica a advogada Cláudia Almeida, idealizadora do projeto.
A jurista, questionada em seguida sobre os motivos que a levaram a abraçar a causa e contribuir para que a ideia de Kandice saísse do papel, dá seu testemunho sobre uma triste realidade: “Já vi muito estuprador absolvido”.
Um recorte da realidade
De acordo com dados de 2021, divulgados pela Secretaria de Direitos Humanos, o país ocupa o segundo lugar no ranking mundial de exploração sexual de crianças e de adolescentes, tendo registrado aproximadamente 500 mil vítimas por ano. Esta análise retrata a dura realidade brasileira para a infância, onde especialmente as meninas e negras (75% das vítimas), entre 7 e 14 anos, ficam desprotegidas e são obrigadas a conviver diariamente com uma violência brutal, que inclui estupros e espancamentos, sujeitando essas jovens ao vício em drogas e álcool, além de infecções por doenças sexualmente transmissíveis.
Os dados são assustadores e revelam um retrato cruel, pois estima-se que existe uma subnotificação, pela qual apenas sete em cada 100 casos são denunciados. Além disso, é preciso recordar por quem esses crimes são praticados: 80% dos abusadores encontram-se dentro do próprio lar, dificultando sobremaneira a atuação na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes pelas ações dos principais subsistemas: Assistência Social, Saúde, Delegacias, Conselho Tutelar e a fiscalização massiva do Ministério Público.
Faça Bonito
O Dia Nacional de Combate ao Abuso Sexual e Violência Contra a Criança e Adolescente, também conhecido como “Faça Bonito”, foi criado pela Lei 9.970/20 e demarca a luta pelos direitos da infância, que engloba sujeitos em desenvolvimento que devem ser protegidos pela família, pela sociedade e pelo Estado. A data foi proposta em 1998, quando cerca de 80 entidades públicas e privadas realizaram, na Bahia, o primeiro encontro do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes (ECPAT Brasil), seguindo determinação da Rede ECPAT International, criada no ano anterior, em Estocolmo (Suécia).
Desde então, vem sendo constituída uma coalizão de organizações da sociedade civil e redes de enfrentamento contra a violência sexual de crianças e adolescentes, na tentativa de assegurar que a infância e a adolescência tenham seus direitos fundamentais garantidos e estejam livres e protegidos da exploração sexual, compreendendo suas quatro dimensões: prostituição, pornografia, tráfico e turismo sexual.
Neste ano, as entidades que integram o Comitê Nacional buscam lembrar que o assassinato da menina Araceli completa 50 anos, trazendo luz a esse caso brutal, na tentativa de despertar a consciência da sociedade, para que barbaridades como essa não mais ocorram no país. Araceli tinha apenas 8 anos quando foi drogada, estuprada e morta por jovens de classe média alta, no dia 18 de maio de 1973, em Vitória, no Espírito Santo. Apesar da natureza hedionda, o crime até hoje permanece impune.
Legislativo goiano
Entendendo os enormes desafios e a urgência em combater o abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes, a Comissão da Criança e do Adolescente da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego), presidida pelo deputado Talles Barreto (UB), organiza ações nesta data, atendendo à determinação da legislação que pretende mobilizar, sensibilizar, informar e convocar toda a sociedade a participar desta luta.
Durante todo o mês de maio, o Palácio Maguito Vilela estará iluminado pela cor laranja na área externa e interna, quando diversas atividades serão conduzidas na Casa não só pelo deputado Talles Barreto, mas também por diversos outros deputados, dentre eles a deputada Bia de Lima (PT), presidente da Comissão de Educação.
O Instituto Veiga Borges está localizado na Rua 229 A, Setor Coimbra, Goiânia-GO. O telefone para contato é (62) 98243-7240.
FONTE
https://portal.al.go.leg.br/noticias/133048/violenciainfantil